segunda-feira, 2 de julho de 2012

2012.06.26 - Mar


Helena Pinto
de José Saramago
As infinitas águas (in Viagem a Portugal)



Mariana

de Jorge Amado
Os velhos marinheiros ou Capitão de longo curso



Cristina e Catarina
de Maria Alberta Meneres
Búzio



Xana Justino e Fernando
de Manuel Bandeira
A onda

A Alexandra J. começou por dizer que o convidado dela não podia estar e portanto teria de lhe ligar.
Marcou um número e passados uns instantes começou a ouvir-se no outro lado da sala esta música no telefone do Fernando que pediu desculpa por ter de atender:

Fernando - a onda anda
Alexandra - aonde anda a onda?
Fernando - a onda ainda
Alexandra - ainda ondaFernando - ainda anda aonde?
Alexandra - aonde?
Fernando- a onda a onda
(e desligou)
(Alexandra também desligou)
Alexandra - A onda
Fernando - Manuel Bandeira


Lena Policarpo e António - Um conto de Mia Couto "O peixe e o homem" in O fio das missangas.
ilustração de Horacio Gatto

Pois que fez Santo António? Mudou somente o púlpito e o auditório […]. Deixa as praças, vai ás
praias; deixa a terra, vai ao mar e começa a dizer altas vozes:
já que não me querem ouvir os homens,
ouçam-me os peixes. Oh, maravilhas do Altíssimo!
Oh, poderes do que criou o mar e a terra!
Começam a ferver as ondas, começam a concorrer
os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos,
e postos todos na sua ordem com as cabeças
de fora da água, António pregava e eles ouviam.
(extracto do Sermão de Santo António, do Padre António Vieira.)

Um dia destes, quando saía de casa, deparei com meu vizinho, Jossinaldo. Estava no patamar, como que me esperando. Dos braços cruzados, espreitava uma trela. Me arrepiei. Sempre eu o tinha evitado, por causa dos ditos e desditos. O homem era conhecido pelo que fazia no parque: levava um peixe a passear pela trela. Caminhava na margem do lago, segurando a trela. No extremo da fita de couro estava amarrado, pela cauda, um gordo peixe. Jossinaldo era, nos gerais, tido por enjeitado; a cabeça do coitado, diziam, cabia toda num chapéu. e acresce-se que o temiam, sem outro fundamento que essa estranheza do seu fazer.

E agora lá estava ele, a tira pendente como uma língua que lhe emergia do corpo. Já eu remastigava uns apressados bons dias quando o vizinho se me interpôs e esticou o braço na minha direcção.

- Peço-lhe este favor!

Estremeci, receoso. Que favor? Era esse mesmo obséquio: o de ir eu substituí-lo no passeio ao peixe. Esquivei-me. O homem não desistiu: que ele estava-se sentindo doente, desvanecente e o peixe do lago não podia ficar orfão, sem ninguém para o conduzir, na fluência das águas.

- Por amor, não recuse!

Fiquei vacilando enquanto, dentro de mim, ecoavam os rumores que descontavam em Jossinaldo e seus descostumes. No bairro todos acreditavam compreender o comportamento do exótico morador. Meu tio, por exemplo, deitava o seguinte entendimento:

Que o vizinho havia sido um pescador e, agora, arrependido, aplicava graças nesse peixe doméstico. A culpa de tanto anzol lhe espetava a alma e ele se redimia, penitente.

Meu avô discordava. Aquilo, para ele, tinha outras, mais fundas explicações.

Não ouvíramos falar do sermão de Santo António aos peixes? Recordávamos o que fizera o Santo António que deixara o auditório das praças e se deslocara para o mar, lançando palavra sobre os seres de guelra e escama. Pois Jossinaldo descobrira que havia sido o inverso: um certo peixe havia pregado aos homens e lhes espalhara a moral sem lições. Os homens atribuíam aos peixes as indecorosas ganâncias que eram da exclusiva competência humana. Adjectivavam a peixaria: os mandantes do crime são chamados de “tubarões”. Os poderosos da indecência são “peixe graúdo”. Os pobres executantes são o “peixe miúdo”. E afinal, onde não há crime é lá dentro das águas, lá é que há a tal de propalada transparência. Pois, quem pregava o sermão, o Santo António aquático era o próprio peixe do lago. Era ele o sermonista.

Minha sabedoria é ignorar as minhas originais certezas. O que interessa não é a língua materna, mas aquela que falamos mesmo antes de nascer. Por isso, me dei licença de escutar Jossinaldo. E fui saindo de casa, caminhando ao mesmo passo do afamado vizinho, lado com lado. Na rua, me olhavam surpresos. Então eu autorizava a companhia do proscrito, no pleno da via pública? Debaixo dos olhares, nos dirigimos ao parque e parámos junto ao lago.

- Veja como ele vem a correr.

E era a maior verdade. O peixão, na vista do vizinho, se aproximou da berma. Jossinaldo debruçou-se e enlaçou a trela á volta da cauda do animal.

- Vá, pegue na trela para ele lhe ganhar familiaridades.

Com o coração de fora, lá segurei na corda. O bicho veio á superfície da água e me olhou com olhos, até me custa escrever, com olhos de gente. E remergulhando me conduziu ele a mim, pela margem. Contornei por inteiro a lagoa para me reencontrar com Jossinaldo.

- Deixe-me despedir dele!

Ajoelhado sobre as águas, o vizinho falou palavras que não eram de língua nenhuma conhecida. Ficou, tenho medo de dizer, conversando com o peixe. Ergueu-se Jossinaldo, lágrima escorrendo, e me apertou as mãos, as duas em duplicado. Não falou, retirou-se em silêncio.

Sou eu agora quem, pela luz das tardes, passeia o peixe do lago. À mesma hora, uma misteriosa força me impele para cumprir aquela missão, para além da razão, por cima de toda a vergonha. E me chegam as palavras do vizinho Jossinaldo, ciciadas no leito em que desfalecia:

- Não existe terra, existem mares que estão vazios.

Dentro de mim, vão nascendo palavras líquidas, num idioma que desconheço e me vai inundando todo inteiro.



Paula, o Daniel, o Henrique e o João, leram O Bojador de Sophia de Mello Breyner Andressen


Promontório de Sagres (0)
Ao fundo, sozinho, voltado para o mar, vestido de escuro está o Infante D. Henrique.
Está sentado numa pedra, ligeiramente curvado para a frente, com o queixo apoiado na mão direita e o cotovelo direito apoiado no joelho direito […].
No primeiro plano […] falam e movem-se as outras personagens. […]
Entra uma mulher com uma criança (que é um rapazinho de sete anos).

CRIANÇA (apontando com o dedo o Infante) – Mãe, o Infante (1), o que é que ele está ali a fazer, sozinho, a olhar para o mar?
MULHER – Está a ver.
CRIANÇA – Mas não se vê nada. É só mar (2).
MULHER – Ele vê melhor do que nós.
CRIANÇA – Ah? Eu pensava que ele não via. No outro dia encontrei-o no caminho e disse: «Bom dia, meu Senhor». Mas ele não me viu.
MULHER – Ele vê bem o que está longe.

(Enquanto acabam de falar entra um velho com barbas compridas e brancas (3).)

VELHO – Era melhor que visse o que está perto. […] Do mar não vem nem glória nem proveito.

(Entra um rapaz de vinte anos que ouve a última frase.)

RAPAZ – Tens a certeza, Velho?
VELHO – Todos os anos ele manda para o Sul as suas barcas (4). E diz aos capitães: «Ide mais longe.» Mas já ninguém pode ir mais longe.

RAPAZ – Tens a certeza, Velho?
VELHO – […] Nunca ninguém passou além do cabo Bojador (5).
CRIANÇA – Onde é o Bojador?
VELHO (sentando-se numa pedra e apontando vagamente para o mar) – Além, ao Sul, na costa de África (6), no mar.
CRIANÇA – E não se pode ir além do Bojador?
VELHO – Não.
CRIANÇA – Porquê?
VELHO – Porque é ali que acaba o Mundo. Do outro lado do Cabo, o calor é tanto que as águas fervem e se transformam em lama. É ali que começa o mar Tenebroso (7). O ar está cheio de nevoeiros negros. Não se vê a luz do Sol. E ondas de lodo estão cheias de grandes monstros marinhos (8).
RAPAZ – Isso são lendas inventadas pelo medo dos Mouros.
VELHO – Mas também nos livros antigos de Ptolomeu (9) e nos livros dos Romanos está escrito que ninguém pode passar além do Bojador.
RAPAZ – Isso dizem os Antigos. Temos que ir nós próprios saber o que é verdade.
VELHO – Mas, que diz a experiência dos mareantes das Espanhas? Que dizem todos os navegadores? […] Dizem […] que barco que ali chegue logo será devorado pelos abismos do mar.
RAPAZ – Velho, e eu digo-te isto: Gil Eanes (10), com a sua barca, passará além do Bojador.
MULHER – Então por que recuaram eles, no ano passado?
VELHO – Porque havia a bordo homens de experiência e juízo que não quiseram avançar para a morte certa.
RAPAZ – Porque pararam primeiro nas Canárias (11) e gente dessa ilha lhes contou velhas histórias fantásticas e mentirosas.
MULHER – Dizem que o Infante repreendeu muito Gil Eanes…
RAPAZ – O Infante repreendeu-o por ele ter recuado em frente de umas lendas boas para assustar crianças.
CRIANÇA – E que fez Gil Eanes?
RAPAZ – Este ano partiu outra vez.
MULHER – E dizem que à partida jurou que só voltaria a Portugal (12) quando tivesse dobrado o Cabo.
VELHO – E por causa dessa promessa ele nunca voltará a Portugal. Há já muito tempo que partiram. Com certeza Gil Eanes já cumpriu a sua palavra. A esta hora já ele dobrou o Cabo. E já as ondas de lodo engoliram a sua barca e já as serpentes verdes do Tenebroso o comeram, a ele e aos seus homens. Fez-se a vontade do Infante. Mas Gil Eanes nunca voltará a Portugal.

(O velho levanta-se e dá um passo em frente.)

VELHO – Nunca ninguém voltou do Bojador.
CRIANÇA (puxando a saia da mãe e apontando o mar, com o braço estendido) – Mãe, mãe, olha, além no mar, toda branca, uma barca. Vem uma barca no mar (13).
RAPAZ (dá uns passos em frente e olha o mar) – É Gil Eanes. Voltou.

Carta do Infante D. Henrique de Portugal (14) a seu irmão o Infante D. Pedro de Portugal (14).
O Infante (ditando devagar, e parando um instante no fim de cada período).

Meu muito amado irmão,
Primeiro que a ninguém vos quero dar esta notícia. Pois esta obra de navegação antes de ser obra foi ideia. E a ideia foi vossa e minha. Juntos, na nossa juventude, ambos pensámos esta grande empresa: mandar barcos para o mar para saber o que havia.
Por isso agora acaba de chegar aqui Gil Eanes, que dobrou o Cabo Bojador. E do outro lado do Cabo não encontrou nem temporal desencadeado, nem correntes irresistíveis, nem vagas de lama, nem nevoeiros negros. Encontrou o mar aberto e livre à sua frente e encontrou uma terra luminosa e nua. Aqui termina a lenda do Tenebroso. Fomos além do medo, das lendas e da ciência dos Antigos. Dobrámos o Cabo onde acabava o mundo. Aqui terminam as eras antigas e começa uma idade nova.

 Sophia de Mello Breyner Andresen, O Bojador, Lisboa, Editorial Caminho, 2000

(texto com supressões)


Vitória - Novos e outros ventos de Francisco José Viegas in Metade da Vida

Às vezes gostaria de estar no sitio onde as ondas
morrem na areia e desfazer-me em espuma.
Aí, perder-me para sempre, como se não existisse
nada senão a altura das árvores,
ou perder-me para sempre por nada ser para sempre,
nada eterno ou cristal como a eternidade
de morrer e inventar uma casa.
Os ventos frios vão e vêm. São pássaros,
como as marés que vão de um rio a outro
e voltam à mesma água.


Carmen - Quanto vale uma torneira? de Isabel Gorjão Santos (ACEP)




Sobre esta praia...

Fernando - Oito meditações à beira do Pacífico de Jorge de Sena
Pergunto-me a mim mesmo – tão curioso
como a criança a ser-se adolescente
que mal se entende em como os corpos agem -
a que diversos jogos ou não-jogos
se dão na intimidade estes que vejo
inteiramente nus no areal da praia
entre uma escarpa que os esconde e o mar
que tudo aceita em ondas sucessivas.
Deitados no saber de ao sol queimarem
o mais oculto de si mesmos são
dois jovens e uma jovem misturados.
Um dos rapazes se recosta contra o corpo
do outro rapaz que alonga dorso e pernas,
enquanto neste se debruça e dobra,
pendendo os frescos seios e os cabelos,
o corpo feminino associado ao de ambos.
Mas nada indica excitação nos machos
de quem se pousa o sexo ou distendido pende
em de sereno indiferente como
a só vazia ausência de mistério
que a corpos dava um fervor quente e humano.
São, como deuses, animais sem cio?
Ou são, como animais, humanos que se aceitam?
Ela é de quem? De um deles só, dos dois?
Um deles será dela mas também do outro?
Será cada um dos três dos outros dois?
Ambos os machos serão fêmeas do outro?
Ou só um deles? Qual dos dois? O que
sentado se recosta? O que deitado
aceita contra o seu o corpo recostado?
Os três são muito belos, e não só
daquela de escultura juvenil audácia
cifrada em curvas duras de suaves linhas,
mas igualmente da pureza límpida
que só em torno ao sexo se enegrece um pouco.
Quem se pergunta como eu me pergunto
confessa claramente que distância
existe entre o passado e este presente
assim deitado ao sol à beira de água
como estes três se deitam ou recostam
sem que sequer com as mãos os sexos toquem,
senão o de outrem, mesmo o de si mesmos.


Paulo Machado - Morte ao meio dia de Ruy Belo




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